A COMUNIDADE ESCOLAR E AS PRÁTICAS INCLUSIVAS
Marina da Silveira Rodrigues Almeida
Consultora em Educação Inclusiva
Psicóloga e Pedagoga especialista
Instituto Inclusão Brasil
contato@institutoinclusaobrasil.com.br
Toda a comunidade
escolar pode exercer uma influência positiva muito relevante sobre o desempenho
integral dos alunos, segundo a filosofia da educação inclusiva. Inversamente,
qualquer pessoa da comunidade escolar poderia influir negativamente, ou seja,
deixaria de ser útil na formação geral dos educandos. Como se explica isso?
Explicações históricas
Vamos, de modo simplista, dividir a história da educação em quatro
épocas, no que se refere aos alunos com deficiência.
Exclusão (antes do século 16)
Nesta
época, nenhuma atenção educacional foi oferecida às pessoas com deficiência,
que também não recebiam outros serviços. A sociedade simplesmente ignorava,
rejeitava, perseguia e explorava estas pessoas, então consideradas ‘possuídas
por maus espíritos ou vítimas da sina diabólica e feitiçaria’ (Jönsson, 1994,
p.61)
Segregação (séculos 17 a início do século 20)
Excluídas da sociedade e
da família, pessoas com deficiência eram geralmente atendidas em instituições
por motivos religiosos ou filantrópicos e tinham pouco ou nenhum controle sobre
a qualidade da atenção recebida.
Integração (décadas de 40 a 80)
Segundo Jönsson
(1994, p.61), foi neste contexto que emergiu, em muitos países em
desenvolvimento, a ‘educação especial’ para crianças com deficiência,
administrada por instituições voluntárias, em sua maioria religiosas, com
consentimento governamental, mas sem nenhum outro tipo de envolvimento por
parte do governo. Algumas dessas crianças passaram a vida inteira dentro das
instituições.
Surgiram, também, escolas especiais, assim como
centros de reabilitação e oficinas protegidas de trabalho, pois a sociedade
começou a admitir que pessoas com deficiência poderiam ser produtivas se
recebessem escolarização e treinamento profissional.
Esta época viu surgirem as classes especiais dentro
de escolas comuns, o que aconteceu não por motivos humanitários e sim para
garantir que as crianças com deficiência ‘não interferissem no ensino’ ou ‘não
absorvessem as energias do professor’ a tal ponto que o impedissem de ‘instruir
adequadamente o número de alunos geralmente matriculados numa classe’ (Chambers
& Harman, in Jönsson, 1994, p.62).
Os testes de inteligência, criados em 1905,
desempenharam um papel relevante, no sentido de identificar e selecionar apenas
as crianças com potencial acadêmico. ‘Este elitismo, que ainda é defendido com
freqüência, serve para justificar a instituição educacional na rejeição de mais
de um terço ou até a metade do número de crianças a ela encaminhadas. Tal
desperdício não seria tolerado em nenhum outro campo de atividade.’ (Unesco, in
Jönsson, 1994, p.62)
Inclusão
(última década do século 20 e início
do século 21)
Inspirada no lema do Ano Internacional das Pessoas
Deficientes (“Participação Plena e Igualdade”), tão disseminada em 19o81,
uma pequena parte da sociedade em muitos países começou a tomar algum
conhecimento da necessidade de mudar o enfoque de seus esforços. Para que as
pessoas com deficiência realmente pudessem ter participação plena e igualdade
de oportunidades, seria necessário que não se pensasse tanto em adaptar as pessoas
à sociedade e sim em adaptar a sociedade às pessoas (Jönsson, 1994, p.63). Isto
deu início ao surgimento do conceito de inclusão a partir do final da década de
80.
Países desenvolvidos, como os EUA, o Canadá, assim
como a Espanha e a Itália, foram os pioneiros na implantação de classes
inclusivas e de escolas inclusivas.
Segundo Mantoan (1997), a inclusão “questiona não
somente as políticas e a organização da educação especial e regular, mas também
o conceito de mainstreaming. A noção de inclusão institui a inserção de
uma forma mais radical, completa e sistemática.
O vocábulo integração é abandonado, uma vez
que o objetivo é incluir um aluno ou um grupo de alunos que já foram
anteriormente excluídos; a meta primordial da inclusão é a se não deixar ninguém
no exterior do ensino regular, desde o começo. As escolas inclusivas propõem um
modo de se constituir o sistema educacional que considera as necessidades de
todos os alunos e que é estruturado em virtude dessas necessidades. A inclusão
causa uma mudança de perspectiva educacional, pois não se limita a ajudar
somente os alunos que apresentam dificuldades na escola, mas apóia a todos:
professores, alunos, pessoal administrativo, para que obtenham sucesso na
corrente educativa geral.” (p.145)
Explicações conceituais
Nos últimos 20 anos, o mundo conheceu conceitos que
mudaram radicalmente a maneira como as pessoas com deficiência devem ser
vistas, tratadas e inseridas nos sistemas sociais gerais. Os principais
conceitos são os seguintes:
Autodefesa.
Ato pelo qual uma pessoa defende por si mesma os seus direitos e interesses
políticos.
Autonomia.
Condição de domínio no ambiente físico e social, preservando ao máximo a
privacidade e a dignidade da pessoa que a exerce. Daí os conceitos de
‘autonomia física’ e ‘autonomia social’.
Cooperação e colaboração. Promovem a ajuda mútua, o respeito mútuo, a
aceitação das limitações e das capacidades de cada pessoa, construindo assim
cidadãos tolerantes, não-preconceituosos, abertos e acolhedores.
Diferenças individuais. Decorrem de idade, combinação única de
inteligências múltiplas com estilos de aprendizagem, temperamento, aptidões e
habilidades, interesses, compleição física, aspirações e sonhos, experiência de
vida etc.
Diversidade humana. Fato numa sociedade plural, ela é composta por todos os segmentos
demográficos representados por gênero, orientação sexual, etnias, raças,
nacionalidades, naturalidades, regiões socioeconômicas, histórico infracional,
histórico penitenciário, deficiências (física, intelectual, visual, auditiva,
múltipla, orgânica, psiquiátrica) etc.
Empoderamento. Processo pelo qual uma pessoa, ou um grupo de pessoas, usa o seu poder
pessoal inerente à sua condição – por exemplo: deficiência, gênero, idade, cor
– para fazer escolhas, tomar decisões e assumir o controle de sua vida.
Equiparação de oportunidades. Processo mediante o qual os sistemas gerais da
sociedade, tais como o meio físico, a habitação e o transporte, os serviços
sociais e de saúde, as oportunidades de educação e de trabalho e a vida
cultural e social, incluídas as instalações esportivas e de recreação, são
feitos acessíveis para todos.
Inclusão social. Processo pelo qual a sociedade se adapta para poder inserir, em seus
sistemas gerais, pessoas até então excluídas e, simultaneamente, estas se
preparam para assumir seus papéis sociais.
Independência. Faculdade de decidir sem depender de outras pessoas (por ex.: membros
da família, profissionais em geral).
Modelo social da deficiência. A sociedade é chamada a ver que ela própria cria
problemas para as pessoas com deficiência, causando-lhes incapacidade (ou
desvantagem) no desempenho de papéis sociais em virtude dos ambientes
restritivos, das políticas discriminatórias e das atitudes preconceituosas que
rejeitam a minoria e todas as formas de diferenças, dos discutíveis padrões de
normalidade, dos objetos e outros bens inacessíveis do ponto de vista físico,
dos pré-requisitos atingíveis apenas pela maioria supostamente homogênea, da
quase total desinformação sobre necessidades especiais e deficiências e sobre
os direitos das pessoas que têm essas necessidades, e das práticas
discriminatórias existentes em muitos setores da atividade humana.
Necessidades especiais. Este termo
não é sinônimo de palavra ‘deficiência’ e nem a substitui. As necessidades
especiais podem resultar de três situações principais: [1] Dificuldades de
aprendizagem ou limitações no processo de desenvolvimento humano, vinculadas a
causas orgânicas (deficiências, síndromes, disfunções) ou vinculadas a causas
sociais (trabalho infantil, prostituição infantil, situação de rua, diversidade
regional, pobreza/miséria etc.), [2] Dificuldades de comunicação e sinalização
(oral, escrita, visual, auditiva, gestual etc.) e [3] Altas habilidades
(superdotação) e grande facilidade de aprendizagem (Resolução CNE/CEB nº 2,
11/9/01).
Rejeição zero. Conceito que se refere a não rejeitar (excluir) uma pessoa, para
qualquer finalidade, com base no fato de que ela possui uma deficiência ou por
causa do grau de gravidade dessa deficiência, sendo que as instituições
precisam ser capazes de criar programas e serviços internamente e/ou de
buscá-los em entidades comuns existentes na comunidade a fim de melhor
atenderem as pessoas com deficiência.
Explicações tecnológicas
O paradigma da
inclusão trouxe no seu bojo imensos espaços que possibilitaram o
desenvolvimento de um conjunto de tecnologias a serem utilizadas na aplicação
de medidas de acessibilidade. Estas medidas de acessibilidade, por sua vez,
contribuem decisivamente para o desempenho dos alunos, com ou sem deficiência,
no processo de ensino e aprendizagem.
Na década de 90, começou a ficar cada vez mais claro
que a acessibilidade deverá seguir o paradigma do desenho (design) universal,
segundo o qual os ambientes, os meios de transporte e os utensílios devem ser
projetados para todos (portanto, não apenas para pessoas com deficiência). E,
com o advento do paradigma da inclusão e do conceito de que a diversidade
humana deve ser acolhida e valorizada em todos os setores sociais comuns, hoje
entendemos que a acessibilidade não mais se restringe à dimensão arquitetônica,
pois existem barreiras de vários tipos também em outros contextos que não o do
ambiente arquitetônico.
Assim, existem seis dimensões de acessibilidade e
elas deverão ser promovidas em todos os ambientes externos e internos. Suas
respectivas características, hoje obrigatórias por lei (por ex.: Decreto
federal nº 5.296, 2/12/04; Resolução CNE/CEB nº 2, 11/9/01; Lei federal nº
10.098, 19/12/00) e/ou em conseqüência do paradigma da inclusão, são as
seguintes:
Acessibilidade arquitetônica: Sem barreiras nos ambientes físicos
(escolas, empresas, residências, edifícios públicos, centros de convenção,
espaços urbanos, equipamentos urbanos, meios de transporte individual ou
coletivo etc.).
Acessibilidade comunicacional: Sem barreiras na comunicação interpessoal
(face-a-face, língua de sinais, linguagem corporal, linguagem gestual etc.), na
comunicação escrita (jornal, revista, livro, carta, apostila etc.,
incluindo textos em braile, textos com letras ampliadas para quem tem baixa
visão, lupa e outras centenas de tecnologias assistivas para se comunicar) e na
comunicação virtual (acessibilidade digital).
Acessibilidade metodológica: Sem barreiras nos métodos e técnicas de estudo
(adequações curriculares, aulas baseadas nas inteligências múltiplas, uso de
todos os estilos de aprendizagem, novos conceitos de educação, aprendizagem,
avaliação do rendimento escolar, recursos didáticos etc., de trabalho
(métodos e técnicas de treinamento e desenvolvimento de recursos humanos,
ergonomia, novo conceito de administração empresarial, empoderamento etc.), de ação
comunitária (metodologias social, cultural, artística etc., baseadas em
participação ativa e protagonismo), de educação de filhos (novos métodos
e técnicas nas relações familiares etc.) e de outras áreas de atividade humana.
Acessibilidade instrumental: Sem barreiras nos instrumentos e utensílios de estudo
(lápis, caneta, transferidor, régua, teclado de computador, materiais
pedagógicos etc.), de trabalho (ferramentas, máquinas, equipamentos
etc.), de atividades da vida diária (tecnologia assistiva para
comunicar, fazer a higiene pessoal, vestir, comer, andar, tomar banho etc.), de
lazer, esporte e recreação (dispositivos que atendam às limitações
sensoriais, físicas e intelectuais etc.) e de outras áreas de atividade humana.
Acessibilidade programática: Sem barreiras invisíveis (implícitas) embutidas em ordenamento
jurídico (políticas públicas, leis, decretos, portarias, resoluções etc.),
em regulamentos (institucionais, escolares, empresariais, comunitários
etc. e em normas em geral.
Acessibilidade atitudinal: Sem barreiras sociais ou culturais (preconceitos,
estigmas, estereótipos e discriminações), eliminadas por programas e exercícios
de sensibilização e de conscientização das pessoas em geral e
também através da convivência na diversidade humana.
Podemos, por
exemplo, dizer que uma escola (sociedade, empresa etc.) inclusiva é aquela que
está implementando gradativamente as medidas de acessibilidade nos seis
contextos acima descritos.
Comunidade escolar praticando acessibilidade
nos seis contextos
Uma escola em
processo de modificação sob o paradigma da inclusão é, então, aquela que adota
medidas concretas de acessibilidade. Quais pessoas devem adotar estas medidas?
Professores, alunos, familiares, técnicos, funcionários e outros componentes da
comunidade escolar. Cada uma destas pessoas tem a responsabilidade de
contribuir com a sua parte, por menor que seja, na construção da inclusividade em
suas escolas. Exemplos:
Arquitetura.
Ajudando a remover barreiras físicas ao redor e dentro da escola, tais como:
degraus, buracos e desníveis no chão, pisos escorregadios, portas estreitas,
sanitários minúsculos, má iluminação, má ventilação, má localização de móveis e
equipamentos etc.
Comunicação.
Aprendendo o básico da língua de sinais brasileira (Libras) para se comunicar
com alunos surdos; entendendo braile e sorobã para facilitar o aprendizado de
alunos cegos; usando letras em tamanho ampliado para facilitar a leitura para
alunos com baixa visão; permitindo o uso de computadores de mesa e/ou notebooks
para alunos com restrições motoras nas mãos; utilizando desenhos, fotos e
figuras para facilitar a comunicação para alunos que tenham estilo visual de
aprendizagem etc.
Métodos, técnicas e teorias. Aprendendo e aplicando os 15 estilos de
aprendizagem; aprendendo e aplicando a teoria das inteligências múltiplas;
utilizando materiais didáticos adequados às necessidades especiais etc. É
oportuno enfatizar aqui a teoria das inteligências múltiplas. Todos os
integrantes da comunidade escolar devem ser informados e capacitados a respeito
desta teoria a fim de que a sua aplicação se torne uma prática comum em toda a
escola. Professores e alunos têm, no uso das inteligências múltiplas, o fator sine
qua non do sucesso do ensino e da aprendizagem. Em todas as aulas e nas
atividades extraclasse, os alunos estarão valendo-se da combinação única de
suas oito inteligências para aprender, realizar trabalhos, interagir
socialmente etc. Os técnicos, em especial os psicólogos, devem também trabalhar
com as inteligências múltiplas para si mesmos e para os alunos e familiares. Os
funcionários administrativos da escola se beneficiarão muito com o conhecimento
da teoria das inteligências múltiplas e passarão a melhor compreender os
comportamentos dos alunos, resultando em um melhor relacionamento interpessoal
com os mesmos. Os familiares terão uma participação importante ao ajudar os
professores e técnicos a identificarem os níveis de desenvolvimento das
inteligências de seus filhos.
Instrumentos. Adaptando a
forma como alguns alunos poderão usar o lápis, a caneta, a régua e todos os
demais instrumentos de escrita, normalmente utilizados em sala de aula, na
biblioteca, na secretaria administrativa, no serviço de reprografia, na
lanchonete etc., na quadra de esportes etc.
Programas.
Revendo atentamente todos os programas, regulamentos, portarias e normas da
escola, a fim de garantir a exclusão de barreiras invisíveis neles contidas que
possam impedir ou dificultar a participação plena de todos os alunos, com ou
sem deficiência, na vida escolar.
Atitudes.
Participando de atividades de sensibilização e conscientização, promovidas
dentro e fora da escola a fim de eliminar preconceitos, estigmas e
estereótipos, e estimular a convivência com alunos que tenham as mais diversas
características atípicas (deficiência, síndrome, etnia, condição social etc.)
para que todos aprendam a evitar comportamentos discriminatórios. Um ambiente
escolar (e também familiar, comunitário etc.) que não seja preconceituoso
melhora a auto-estima dos alunos e isto contribui para que eles realmente
aprendam em menos tempo e com mais alegria, mais motivação, mais cooperação,
mais amizade e mais felicidade.