“Ê, Ê, Ê... Morena/ Ô, Ô, Ô... Machada/ Ê, Ê, Ê... Graúno/ Ô, Ô, Ô... Pelada.
O
vaqueiro solta a voz/ No oco do mundo,/ Com seu aboio triste,/ Em
poucos segundos,/ Encanta gente e gado./ Eita aboio profundo!”
O trecho acima é palavra escrita de um menino chamado Henrique
Douglas de Oliveira, de 12 anos. Filho de vaqueiro, ele transcendeu –
virou a vida do pai em poesia. Ao fazê-lo, tornou-se um dos 20
vencedores da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.
Eu só tinha passado pela terra do Henrique, José da Penha, no Rio
Grande do Norte, quando acompanhei Gretchen, a rainha do rebolado, em
sua peregrinação por circos mambembes do interior nordestino, para fazer
um documentário. Gretchen aparece numa cena do filme, falando com a
dona do circo, pelo telefone, com o Brasil diante dela feito mapa,
óculos se fazendo de equilibrista no nariz: “Zé de José?”. Era José da
Penha, menos de 6 mil habitantes, aonde Gretchen vai atrás do povo, ela
que vai a Brasis aonde bem poucos vão. Mas, quando estive lá, eu não
sabia que José da Penha era também uma terra rica de Henriques. Por não
saber, eu era mais pobre e também não sabia disso.
Foi o que eu descobri, quando, semanas atrás, aterrissaram dois
calhamaços lá em casa, contendo 152 textos, divididos em quatro
categorias: poesia, crônica, memória literária e artigos de opinião.
Eram os finalistas da Olimpíada de Língua Portuguesa. Em 2012, esse
programa de educação envolveu cerca de 100 mil professores e cerca de 3
milhões de alunos, de 40 mil escolas, em mais de 5 mil municípios
brasileiros. Eu tinha aceitado o convite para participar como jurada da
comissão julgadora nacional, mas não tinha avaliado bem a trabalheira em
curto espaço de tempo. Pensei: “Ai!”. Mas doeu só até começar a ler.
Percebi duas coisas: 1) que falta faz esse Brasil com sotaque não só
no falar, mas também na escrita; 2) que falta faz esse contar que não
está nos jornais para nos contar de nós. Só então alcancei o privilégio
de receber notícias dos tantos Brasis dos quais poucas notícias nos
chegam, em várias línguas portuguesas – e não numa só. Os melhores
textos eram justamente aqueles como o do Henrique, que não tentaram
encaixotar a vida na linguagem dominante (mais ou menos essa que eu uso
aqui, disseminada pelo Brasil especialmente pelos telejornais). Os
melhores textos eram aqueles que carregaram para a escrita a variação
linguística do seu Brasil, com palavras e ritmos nascidos de uma
experiência diversa de ser brasileiro.
A Olimpíada de Língua Portuguesa, para quem não conhece, é um
concurso de textos entre escolas públicas de todo o país. Mas é muito
mais do que isso, porque a ideia é iniciar uma transformação, pela
palavra escrita, tanto no modo de ver o mundo, como a si mesmo – um modo
de ver por escrito que ultrapasse os limites da escola e contamine a
família e a comunidade, transformando-as também. Porque uma palavra só é
com relação a um outro – e uma escola só é com relação à sua
comunidade. Fora disso ela implode, perde a si mesma, arrastando
família, comunidade, professores e alunos nessa perdição, que é o que
temos testemunhado nas últimas décadas no país.
Fazendo uma ponte com outros saberes e olhares do Brasil, a Olimpíada
retoma a ideia do que um guarani-caiová (“Kaiowá” com “k” e “w” quando
eles mesmos escrevem) chamaria de “palavra que age”, como já contei em
outra coluna,
ou até “palavra-alma”, aquela que circula pelo corpo. E como essa
palavra age. Dentro e fora. Os estudantes descobrem que a palavra
escrita, quando é escrita não apenas para cumprir tarefa ou para agradar
ao professor, não como algo chato ou esvaziado de sentido, mas sim para
expressar a experiência, registrar a memória e transcender a vida,
mobiliza forças. Ao mobilizar forças, coisas acontecem.
Algumas delas bastante reveladoras, como conta Sônia Madi,
coordenadora da Olimpíada. Numa cidade do Mato Grosso, no curso do
programa, professora e alunos montaram na escola um painel sobre as
graves questões ambientais. Foi destruído. Em outra cidade, uma aluna
discutiu em seu texto de opinião a legitimidade ou não da candidatura a
prefeito de um homem que havia cometido um assassinato, mas ainda não
tinha sido julgado. Ela e a mãe sofreram ameaças. A ponto de a mãe pedir
para a filha desistir de continuar na Olimpíada. A garota permaneceu.
Nestes casos, a escola documentou aquilo que acontecia na vida, mas
nem sempre era registrado pela imprensa – e provocou reações de quem,
escorado no poder, não estava acostumado a ser questionado. Provocou
também conhecimento, debate e ação na comunidade. Como a professora
Elisângela de Araújo e um grupo de alunos de Cruzeiro do Sul, no Acre.
No curso das atividades propostas pela Olimpíada, eles criaram um
folheto para os moradores com o objetivo de barrar o que poderia ser
chamado de morceguicídio. Como os morcegos eram populosos na região e
não são animais simpáticos aos olhos humanos, apesar da recente febre
vampirística, eram vítimas de chacinas cotidianas. Ao compartilhar
conhecimento com a comunidade, mostrando que os morcegos tinham uma
função importante no meio ambiente, inclusive como agente de
reflorestamento, esse grupo de professora e alunos cumpriu o papel da
escola – fez uma intervenção.
É como palavra que age que os trabalhos são propostos à rede pública
do país. Coordenada pelo Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em
Educação, Cultura e Ação Comunitária), com financiamento da Fundação
Itaú Social e, desde 2008, também do Ministério da Educação, a Olimpíada
completou uma década. Na primeira edição, em 2002, o estudante Ronilson
da Silva Procópio desfilou em carro de bombeiro pelas ruas de Benjamin
Constant, no Amazonas, por tê-la vencido. Os criadores do programa
tiveram certeza de que o projeto tinha dado certo: já não era apenas
jogador de futebol que desfilava em carro aberto pelas ruas do Brasil.
Cada edição da Olimpíada dura dois anos – nos pares é realizado o
concurso de textos, nos ímpares a formação de professores. Todas as
secretarias municipais de educação são convidadas a participar e, as que
aderirem, elegem uma pessoa que vai coordenar a campanha no município –
integrando tanto escolas municipais quanto estaduais, superando já de
início a costumeira e boba rivalidade entre as duas redes. As
escolas/professores que aderirem recebem um manual com oficinas de
escrita, sempre com a ideia de ampliação de repertório e da construção
de uma experiência que vá muito além do concurso e da escola. O tema é o
mesmo para os quatro gêneros: “o lugar onde vivo”.
Os alunos que trabalham com poesia, da quinta e sexta séries do
ensino fundamental, são estimulados a conhecer os poetas da sua
comunidade. Em memória literária, no sétimo e oitavo ano, buscam a
história das pessoas mais velhas, rompendo a barreira das gerações e
valorizando o conhecimento do outro. Em crônica, gênero do nono ano do
ensino fundamental ou do 1o do ensino médio, o desafio é encontrar as
marcas da cidade, as frestas nas quais a vida se reedita no cotidiano.
Como faz uma das estudantes, ao descobrir que, na sua cidade, onde não
tem nenhuma rua plana, os verbos mais conjugados são “descer” e “subir”.
Nos textos de opinião, escritos pelos alunos da 2a e 3a séries do
ensino médio, devem abordar os vários lados de uma questão que mobiliza –
ou deveria mobilizar – a comunidade. E, a partir daí, posicionar-se.
Cada escola elege seus melhores textos, nos diferentes gêneros, e
disputa a etapa municipal. E assim por diante, até chegar a nacional. Os
selecionados de cada estado participam das oficinas regionais, para as
quais viajam com seus professores, o que já é um prêmio. Quem participou
da oficina de crônica, entre outras atividades, ganhou uma câmera e
entrevistou um fotógrafo sobre a apreensão do momento; quem trabalhou
com memória literária ouviu do maestro João Carlos Martins: “No momento
em que você usa a memória para aprimorar aquelas qualidades que você
recebeu, você realmente está construindo o seu futuro”.
É neste momento que surgem depoimentos como o do menino que explica
seu processo criativo: “A pessoa escreve na ponta do lápis, a pessoa vai
escrevendo de letra em letra, de pouquinho em pouquinho, e quando vê já
tem uma estrofe. Eu gosto de trabalhar com rima porque a rima é
divertido, a rima dá um diferente sentido na estrofe”. Ou a menina
indígena que conta: “Lá na reserva, o povo diz que é indígena. Mas aqui
na cidade não fala que é, por medo de ser... como é que se diz?
Rejeitado. Eu falo, pra quem quiser ouvir”. (vale muito a pena assistir
ao vídeo aqui).
Ao ler os textos, descobrimos Brasis que a maioria de nós desconhece.
Roberta Oliveira Morim, aluna da professora Rosangela Aparecida Morim,
da Escola Estadual Anita Ramos, nos conta que, em Douradoquara, no
estado de Minas Gerais, “não tem shopping, não tem churrascaria, não tem
pizzaria, não tem funerária, não tem feira, não tem zoológico, não tem
Pronto-Socorro, não tem espaço cultural, não tem parque, não tem quase
nada”. É importante observar com que inteligência ela faz a sua crítica.
E com que inteligência ela reconhece uma riqueza que só há lá, na sua
aldeia: “Mas aqui tem uma coisa que cidade nenhuma tem. Sabe o que tem
aqui? O jumento do tio Joãozinho”. Ficamos sabendo então que, em
Douradoquara, a população não acorda nem com despertador, nem com apito
de fábrica, nem com galo: acorda com jumento. Quem anuncia o dia por lá,
pontualmente, às 6h da manhã, é o zurro do Paioso, um “jumento pega” de
pelos acinzentados e metro e trinta de altura.
“Relógio Jumento” foi uma das cinco vencedoras nacionais, na
categoria crônica. Desde que li, não tem dia que eu acorde em São Paulo –
neste último domingo acordei com o foguetório dos corintianos às 5h30
da manhã – sem que eu lembre do Paioso. Que, graças à Roberta, agora
também faz parte do Brasil que me habita.
Em memória literária, um dos cinco textos vencedores foi o
extraordinário “O tempo, o chiado e as flechas”. Escrito por Jhonatan
Oliveira Kempim, de 13 anos, e orientado pelo professor Alan Francisco
Gonçalves de Souza, da Escola Municipal Teobaldo Ferreira, de Espigão
d’Oeste, em Rondônia, ele documenta um conflito real, mas o transcende
pela literatura. Assumindo a primeira pessoa da narradora, ele conta o
encontro entre indígenas e posseiros na derrubada da floresta amazônica
nos anos 70. Mas o faz usando o chiado da panela de pressão como
metáfora da invasão de um mundo pelo outro.
Ao escutar o chiado da panela, um barulho que não pertencia ao seu
universo, um pequeno indígena apavorado disparou uma flecha que alcançou
a garganta do filho daquele que derrubava a mata e com ela o território
do outro, acreditando nas promessas de progresso do Brasil Grande da
ditadura militar. Duas crianças inocentes numa guerra que não lhes
pertencia.
Ao transformar memória em palavra, aquela que narra se descobre em
terra arrasada, cercada por grades e muros eletrificados. Identificada
não mais com o “progresso” que foi buscar, mas com as últimas árvores
sobreviventes e com rios que têm sede. Descobre que ela também resta em
um mundo no qual até o chiado da panela se calou, porque tanto o
indígena quanto o invasor foram sequestrados de si.
Nesta edição de 2012, há muitas pistas para reflexão. Trago algumas
delas para cá. No quesito “as notícias que o Brasil nos dá”, destaco que
boa parte dos textos de opinião escritos pelos estudantes revela a
preocupação das pequenas e médias cidades com o impacto, no meio
ambiente e na vida das pessoas, das grandes obras de infraestrutura
promovidas pelo Estado e também pela intervenção de grandes empresas em
áreas como a mineração. Me chamou a atenção o fato de que essa
preocupação não alcança expressão correspondente na imprensa que tem
como missão documentar a história cotidiana do país, na qual me incluo.
Um outro ponto importante é perceber a procedência dos trabalhos
vencedores na etapa nacional. Entre os 20 vencedores, nas quatro
categorias, quatro são de Minas Gerais, três do Paraná, dois do Rio
Grande do Norte e dois do Ceará. E cada um dos seguintes estados tiveram
um vencedor: Acre, Amapá, Rondônia, Pará, Paraíba, Pernambuco, Sergipe,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nesta relação chama a atenção pelo
menos duas ausências: São Paulo e Rio de Janeiro, sendo que São Paulo
participou com o maior número de textos na etapa inicial.
Outro dado revelador é que, entre os 20 vencedores, apenas quatro
são estudantes de escolas nas capitais: Natal, Recife, Macapá e Rio
Branco. Entre os 152 finalistas, a proporção é semelhante: apenas 24
estudam em capitais – o equivalente a 16%. Olhando apenas para
finalistas fora das capitais, 64% vivem em cidades com até 50 mil
habitantes.
Vale a pena pensar no que isso significa. E várias hipóteses podem
ser levantadas. Sônia Madi, a coordenadora da Olimpíada, acredita que
uma das questões decisivas para o resultado é o envolvimento da
comunidade em todo o processo, das oficinas aos textos. “Em cidades
pequenas, a comunidade adota a ideia e se envolve com as atividades. A
Olimpíada é um acontecimento”, diz. “Já nas maiores, especialmente nas
capitais, tudo é mais difícil. Em São Paulo, por exemplo, os professores
já vivem a dificuldade de ir de uma escola à outra, de dobrar período,
tudo é mais complicado.”
Me arrisco a sugerir uma hipótese, entre as tantas que podem ser
examinadas. Quem conhece as periferias do Rio e de São Paulo sabe que
tanto as experiências quanto as variações linguísticas pelas quais as
experiências são expressadas são riquíssimas. Tão ricas quanto diversas
entre si – e diversas das realidades dos muitos interiores do Brasil. Só
na periferia de São Paulo, que conheço um pouco, a quantidade de
palavras que precisaram ser criadas para dar conta da realidade é
enorme. Mas talvez a escola não esteja conseguindo acolher essas
variações linguísticas, já que elas não apareceram nos textos – pelo
menos naqueles que eu li.
Imagino que seja muito difícil para um estudante se expressar com
palavras que não sejam as suas – traduzindo uma experiência de periferia
com uma linguagem falada nos Jardins. Uma espécie de “preconceito
linguístico” que pode ter sido reproduzido em parte das escolas. Isso
acontece quando a escola não consegue construir a ponte com a comunidade
na qual está – e na qual se realiza como escola.
É apenas uma das hipóteses a ser investigada e posso estar
equivocada. O fato é que a riqueza encontrada em manifestações
artísticas como o hip-hop ou em eventos literários como a FLUPP
(Festival Literário das UPPs, realizado nas comunidades do Rio neste
ano) e a Cooperifa (o maior sarau literário do país, reeditado a cada
quarta-feira na periferia da Zona Sul de São Paulo) não apareceram na
Olimpíada.
Neste sentido, sempre lembro do poeta Sérgio Vaz, da Cooperifa, numa entrevista que
fiz com ele anos atrás. Um intelectual reclamou ao poeta: “Na Cooperifa
vocês ensinam a escrever errado! Vão acabar deixando recado na porta da
geladeira com ‘nóis vai’”. Sérgio Vaz retrucou, com a verve habitual:
“Primeiro, que não tem geladeira pra botar recado. Segundo, que quando
nóis vai, nóis vai mesmo”.
O que a Olimpíada nos mostra é que, quando a escola pública cumpre o
seu papel, o Brasil dialoga. E dialoga pela diversidade – tanto de
experiências quanto de variações da língua portuguesa. Quando a escola
pública perdeu qualidade e prestígio, a classe média desertou. Mas o que
poucos pais percebem é que uma escola não se define apenas pela
competência em transmitir conteúdos programáticos, mas também e
principalmente pela capacidade de ser um espaço de convivência dos
diferentes.
No momento em que a escola privada vira um gueto de classe, cada vez
mais fechada em si mesma, ela perde uma das principais razões de ser de
uma escola, na medida em que só é possível o convívio entre iguais. É
por isso que, na minha opinião muito pessoal, mesmo aquelas que são
consideradas as escolas privadas de excelência do país, com aprovações
massivas nos vestibulares das melhores universidades, são escolas que
falham tremendamente na sua missão de educar.
As consequências dessa deformação naquilo que é a essência da
educação a gente percebe nas ruas. Assim, me parece, as lições da
Olimpíada de Língua Portuguesa, que bota a dialogar a filha de um
plantador de fumo da região sul com o filho de um vaqueiro do Nordeste,
dizem algo crucial não só para a escola pública, mas também para a
privada. Se quisermos ter educação de qualidade neste país, é preciso
derrubar os muros – tanto os reais quanto os simbólicos – e dialogar.
Dialogar a partir da experiência de cada um, com a experiência de
todos os outros. Quando a educação se precariza, não é apenas de falta
de mão de obra qualificada que o Brasil padece – mas de brasileiros
capazes de reconhecer a experiência do diferente e dialogar com ela, em
todos os espaços da vida. Porque é neste diálogo que um país cresce – ou
se torna.
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P.S. – Recomendo – com muita veemência – que, sobre a língua
portuguesa, assistam à conferência do linguista Carlos Alberto Faraco
sobre a “senhora dona norma culta” e o “pretoguês” (clique aqui).
Eliane Brum escreve às segundas-feiras.